'Nem parece que não tenho estômago, como de tudo', conta Fabio Faraj, que fez uma gastrectomia preventiva

2024-12-27    HaiPress

O gerente de produtos de oncologista Fabio Faraj. — Foto: Egberto Nogueira/ímãfotogaleria

RESUMO

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GERADO EM: 26/12/2024 - 20:27

Importância da Medicina de Precisão na Prevenção do Câncer

Fabio Faraj,gerente de produtos de oncologia,fez gastrectomia preventiva após descobrir mutação no gene CDH1. Sua jornada destaca a importância da medicina de precisão na prevenção do câncer e alerta para a necessidade de testes genéticos em famílias com histórico da doença.

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O gerente de produtos de oncologia Fabio Faraj,de 39 anos,descobriu em 2018 que era portador da mutação no gene CDH1,que aumenta consideravelmente o risco de desenvolver câncer de estômago. Após o diagnóstico ele foi submetido a uma gastrectomia total (nome do procedimento que retira completamente o estômago) e,após um período de adaptação,conseguiu retomar a uma rotina normal,comendo praticamente de tudo,sem exageros.

Faraj descobriu a mutação após seu pai ser diagnosticado com câncer de estômago - e um médico achar estranho o fato de vários familiares terem já sido diagnosticados com o mesmo tumor – e ele realizar um teste genético.

A estratégia faz parte de um conceito chamado “medicina de precisão”. Na oncologia,esse tipo de abordagem pode ser aliado da prevenção - caso de Faraj – ou do tratamento. Os testes genéticos ajudam na detecção de mutações que aumentam consideravelmente o risco de câncer.

Em geral,eles são indicados para analisar cânceres hereditários em família de alto risco. Talvez o exemplo mais emblemático disso seja a mutação do gene BRCA,que levou a atriz Angelina Jolie retirar as mamas e os ovários há cerca de uma década para prevenir a doença após descobrir que era portadora de uma mutação que aumenta o risco de câncer em diversos órgãos. Jolie realizou o teste genético,pois perdeu a mãe,a avó e uma tia para o câncer.

Ao GLOBO,Faraj conta sua trajetória do diagnóstico à retirada do estômago e recuperação e alerta para a importância de estar atento à presença de diversos casos de câncer na mesma família.

Como você descobriu que carregava uma mutação que aumenta o risco de câncer de estômago?

Em 2017,meu pai foi fazer uma endoscopia de rotina. Minha mãe me mandou o resultado do exame e a primeira palavra que eu lembro de ter visto naquele meio todo foi “carcinoma”. Eu já trabalhava em uma empresa farmacêutica,com um produto de oncologia,então já conhecia bastante do assunto e sabia que ia começar uma longa batalha para o meu pai e toda a família. Ele ficou meses no hospital por causa do tratamento. Como o tumor estava num estadiamento um pouquinho mais avançado,ele fez o tratamento tradicional com quimioterapia e cirurgia aberta,e teve uma recuperação muito difícil. Ao mesmo tempo que foi uma coisa ruim ele ficar tanto tempo no hospital,ele teve a chance de conhecer muitos médicos e um deles levantou a questão de que tinha muitos familiares do meu pai que tiveram câncer. Até então,não tínhamos conectado os pontos. Minha avó faleceu de câncer gástrico,a irmã do meu pai faleceu de câncer gástrico e meu primo de 33 anos foi fazer uma cirurgia,que agora não me lembro bem para que,e descobriu um tumor. Ele fez gastrectomia e está curado. Mas eram muitos casos na mesma família. Então meu pai fez um exame genético. Eu só fiquei sabendo disso no dia que ele me ligou no trabalho,o que ele nunca faz,então eu sabia que era importante. Ele estava super nervoso,pedindo que eu fosse ao hospital no dia seguinte falar com a oncogeneticista porque ele tinha feito um exame genético que deu positivo e talvez eu tivesse um risco aumentado de câncer gástrico.

Você já sabia qual era a mutação?

Como eu já trabalhava com oncologia e,inclusive,com um produto de câncer gástrico,pedi para ele me passar o nome da mutação para eu dar uma olhada. Ele disse que era no gene CDH1. Entrei no Pubmed (site ligado ao Instituto Nacional de Saúde dos EUA que concentra literatura científica) e comecei a pesquisar. Os artigos falavam muito sobre a probabilidade de ter câncer,que era na faixa de 85% para quem testasse positivo para essa mutação,e a recomendação é que fosse feita uma cirurgia profilática,de retirada do estômago. Nessa hora você pensa "isso não pode estar acontecendo comigo. Mas vamos lá".

Como foi quando você recebeu o diagnóstico de que também carregada a mutação?

No dia seguinte à ligação dele,eu e minha irmã fomos na oncogeneticista. Ela explicou que meu pai tinha esse diagnóstico positivo,sugeriu que fizéssemos o exame e foi curta e grossa "se tiver positivo,a solução é tirar o estômago. Uma gastrectomia total e segue a vida". Mas para quem que não é médico,já veio aquele pensamento de "como assim vou tirar meu estômago?". Meu hobby é gastronomia e para mim era muito confuso. Fiz o exame,que é um exame de sangue simples,mas demora um pouquinho mais para sair o resultado. Quando chegou no 30º dia,comecei a entrar todo dia para ver se tinha saído e pensava "vai dar negativo". Quando li,o meu veio "positivo pra CDH1" e o da minha irmã,negativo. Como eu conhecia muitos oncologistas,fui falar com sete e,desses,seis recomendaram a retirada do estômago. Mas era muito difícil para mim tomar uma decisão. Acho que eu queria achar algum oncologista que me falasse que tinha outra solução. Um deles até me deu a opção de fazer endoscopia a cada três meses e tomografia a cada seis meses. Mesmo assim,havia o risco de identificar o câncer já em estágio avançado. Entre março e novembro de 2018,que foi o período entre a descoberta da mutação e a cirurgia,adotei esse racional de fazer endoscopia periodicamente. Mas o único momento que eu ficava aliviado era quando vinha o resultado do exame. Mas eu já começava a pensar "e se daqui três meses aparecer alguma coisa?".

Quando você decidiu fazer a cirurgia?

Falei com vários médicos,reencontrei um cirurgião gástrico que foi uma pessoa que me ajudou muito na minha trajetória e aos poucos fui aceitando. Ele conseguiu,com um jeito mais humano,me explicar que era possível ter uma vida normal em termos de alimentação após a cirurgia. Mas antes da cirurgia,é difícil acreditar nisso. O que mais ajudou foi me conectar com outros pacientes. Eu tive sorte de encontrar pessoas,em especial fora do Brasil,com a mutação,que também tinham passado por isso. A maioria estava nos Estados Unidos ou em países como novas Zelândia e Austrália,que já tem esse rastreamento genético um pouquinho mais ativo. Acho que o Brasil ainda está engatinhando nessa questão de exame genético. Mas essas pessoas diziam seguir uma alimentação normal. Além disso,eu tenho dois filhos e quero ser um bom exemplo para eles porque eles também têm chance de herdar a mutação,que é 50% do pai e 50% da mãe. Pensei que se um deles testar positivo,quero ser um bom exemplo e decidi operar.

Como foi a sua alimentação antes da cirurgia? Você comeu as coisas que gostava e achava que corria o risco de não poder comer mais?

Eu fiz uma espécie de “viagem de despedida” com a família para os Estados Unidos,para a Disney. Eu comia pizza,das mais gordurosas,no café da manhã. Colocava bacon em tudo. Foi uma boa despedida. Tão boa que meu colesterol chegou no nível que eu quase tive que postergar a cirurgia. Abusei um pouco,mas no final deu tudo certo.

Como foi a cirurgia?

As pessoas costumam comprar a gastrectomia com a cirurgia bariátrica,mas a gastrectomia é muito mais complexa porque na bariátrica o paciente fica com um pedaço do estômago. Na gastrectomia completa,como a minha,o intestino é ligado diretamente no esôfago. Meu pai fez cirurgia aberta,mas a minha foi por laparoscopia. Foram cerca de 10 horas de cirurgia e 30 dias internado e aí começa a minha jornada como gastrectomizado,que é a pessoa que vive sem o estômago. Quando eu operei,meus exames estavam todos normais. Mas meu cirurgião me ligou um dia a tarde e disse "nossa,você é uma pessoa de sorte,porque a patologia do seu estômago mostrou que você já estava com quatro focos in situ da doença". O câncer já estava no meu estômago e isso mostrou que foi a decisão certa. Mas para mim foi um pouco assustador receber esse diagnóstico e comecei a ver a vida com outro olhar. Comecei a pensar "que bom que tive a chance de descobrir,de fazer o exame genético e tirar no estômago antes de que alguma coisa pior acontecesse".

Então você já tinha câncer de estômago,mas os exames não mostravam?

Quando eu fazia endoscopia,meu médico pedia para o endoscopista tirar 50 amostras,em vez de quatro,por exemplo,para procurar bem. E mesmo assim,não encontravam nada. Então,para mim,a patologia ter vindo positiva depois da cirurgia foi realmente muito chocante. E percebi como é importante para a sociedade ter os exames genéticos.

Como foi sua recuperação depois da cirurgia?

Fiquei internado cerca de um mês porque no começo,você fica com sonda gástrica. Depois,começa uma alimentação pastosa. Você vira um bebê praticamente. Come 50 g de comida numa refeição,aumenta para 100,120 e vai aumentando aos poucos. Perdi 30 kg em cerca de quatro meses e foi uma reconstrução de dia a dia. Com o tempo você vai criando uma bolsa,à custa de muito enjoo. Além disso,a pessoa que faz gastrectomia tem que passar por uma reeducação alimentar,por exemplo evitar a comidas gordurosas e muito açucaradas. Tive que me reeducar,mas aos pouquinhos fui conseguindo aumentar a minha ingestão de calorias. Demorei três anos para recuperar meu peso normal,que é de 70 e poucos quilos. O que eu percebi é que o exercício físico me ajudou muito. Eu sempre gostei de fazer exercício e percebia que treinar me incentivava a me alimentar melhor. E via o peso subindo na balança aos pouquinhos.

Qual foi a primeira coisa que você comeu quando pôde voltar a ter uma alimentação normal?

Sou muito viciado em pizza. Como pelo menos uma vez por semana. Lembro que eu tinha um aniversário,uma ou duas semanas depois de sair do hospital. Cortei meia fatia de pizza e fui comendo aos poucos. Eu nem sabia se eu já podia comer algo tão sólido assim. Mas foi meu primeiro contato de saber que eu iria começar a ter uma vida normal.

Como é sua alimentação hoje?

Se você me ver almoçando,vai falar que nem parece que não tenho estômago. Talvez eu coma uma frequência um pouquinho maior porque meu reservatório é menor. Então eu estou sempre comendo alguma coisa ou carregando alguma coisa para comer. Mas nunca deixei de ter o prazer de comer. Eu consigo comer um doce de vez em quando,uma pizza. Eu como uma pizza brotinho inteira sozinho. O que eu não posso é abusar porque eu passo mal. Tem gente que acaba desenvolvendo restrição à lactose,não consegue ingerir bebida alcoólica ou até beber água direito porque dizem que fica com um sabor estranho. Cada é caso é um caso e eu tive a sorte de hoje conseguir comer absolutamente tudo.

Como está sua saúde hoje? Você precisa fazer algum controle específico?

Estou indo para o meu sexto ano de operado. Pela gastrectomia,eu tinha que fazer cinco anos de acompanhamento para ser considerado curado. Hoje eu faço uma um check-up anual pela empresa e acabo acompanhando a saúde por meio disso. Inclusive,no último,descobri que vou ter que tirar a vesícula,que é uma das consequências da gastrectomia porque tem uma chance maior de formar pedra na vesícula. O check-up identificou um líquido espesso na vesícula. Falei com o meu cirurgião,que disse que tem que tirar,mas que para quem já tirou o estômago,"é uma volta no parque". O engraçado é que os meus exames,de glicose,colesterol,etc,estão melhores do que antes. Se você olhar só pelo exame,você vai ver que estou mais saudável do que antes. Também faço reposição de algumas vitaminas,como B12 e ferro. Mas nada muito complicado.

A mutação CDH1 aumenta o risco de outro tipo de câncer?

Para CDH1,o principal risco é o câncer de estômago. Para mulheres,também existe a recomendação de fazer mastectomia,que é a retirada das mamas. No caso do homem não é necessário. O que sabemos para pacientes do sexo feminino é que primeiro elas precisam tirar o estômago,que é onde está o maior risco,e depois considerar a remoção da mama.

Outras pessoas na sua família fizeram o exame genético também?

Comunicamos outras pessoas da família,mas só eu e minha irmã fizemos. Acho que o câncer ainda é visto daquela forma que as pessoas preferem não saber. Meus filhos também terão que fazer um dia. Os médicos recomendam que o exame seja feito com 10 a 5 anos de antecedência do caso mais jovem reportado na família,que foi o meu,aos 33 anos. Eu gostaria que eles fizessem assim que completassem a maioridade,para não correr o risco de desenvolver a doença. Mas vai ser uma decisão deles e é uma decisão difícil porque uma vez que você sabe a informação,a sua vida já muda.

Como você enxerga sua jornada nesses últimos seis anos,desde que descobriu a mutação?

Hoje eu vejo que a jornada valeu a pena,não só pela questão da saúde,mas porque tem um significado totalmente novo para a minha vida,de que como o tempo que a gente tem aqui é precioso. Ver que eu tive a chance de ter essa cura me deixa muito feliz. Conheci muitos pacientes que estavam tratamento,me perguntavam da gastrectomia,e que hoje já se foram. Então para mim,o saldo é positivo. Também fico feliz porque passar por isso me deu a chance de levar isso a outras pessoas. Eu tenho oportunidade de falar em alguns eventos e frequentemente me deparo com algum paciente que está na mesma aflição do que eu estava,achando que não vai poder mais comer,não terá mais prazer em comer,irá emagrecer muito,etc. Para mim,é um alento poder mostrar para eles que existe vida após essa situação toda. Também acho que é sempre importante as pessoas estarem atentas a esses casos que são muito repetidos do mesmo tumor na mesma família. Isso pode ser um sinal de que é bom buscar alguma orientação de um profissional médico. Quem sabe mais pessoas descubram isso também e se livrem dessa doença.

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