Fernanda Torres em 'Ainda estou aqui',de Walter Salles — Foto: Divulgação
GERADO EM: 14/01/2025 - 21:10
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Numa aldeia,todo mundo é famoso
(Erving Goffman)
É um desfecho venturoso de um ato ou obra. O êxito assegura a existência da felicidade e produz momento de gratidão pela existência.
— A vida presta — ponderou sabiamente uma exitosa Fernanda Torres.
As lágrimas do êxito vão para o céu e são o avesso dos pranto amargo das injustiças e dos infortúnios que obrigam a engoli-las.
Uma explosão de êxito foi o que vi no agradecimento de Fernanda Torres ao receber o Globo de Ouro de melhor atriz no filme “Ainda estou aqui” — um drama revelador de eventos morais e políticos marcados pela coragem e determinação de Eunice Paiva,uma mulher que teve a vida contada num livro comovente do filho,Marcelo Rubens Paiva,cujo talento como autor eu admiro.
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A explosão exprime uma vitória patente e — como diria Nélson Rodrigues — insofismável da cinematografia do Brasil como uma arte fundamental de universalização de fábulas e estórias que constituem o coração e a alma da cultura do país. São essas articulações — com início,meio e fim — da ficção que traduzem para o outro,e para cada um de nós,a sociedade com seus dilemas e singularidades.
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A importância de “Ainda estou aqui” reside sobremaneira na serenidade do estilo de Walter Salles,que orquestra num filme o terror dos regimes autocráticos salvacionistas,cruelmente polarizadores — tipo “nós ou eles” —,como infelizmente conhecemos na ditadura militar,que,por sinal,não foi a primeira ditadura que vivemos. O filme exibe um trecho da tragédia brasileira que se repete como expressão funesta das hipocrisias que são parte do nosso dilema — lei ou privilégios,igualdade ou elitismo. Eis o cerne da nossa perene ambiguidade político-institucional.
Mas,cabe perguntar,por que o filme comove? A resposta me conduz a um livro escrito em 1985,“A casa e a rua”,no qual mostro como o regime social da casa é de intimidade,afeto,comensalidade e confiança. No lar não há leis escritas; mas,na rua,vale a impessoalidade que,em regimes autocráticos e salvacionistas,conduz aos totalitarismos. Vale lembrar que um regime totalitário se caracteriza pelo controle de todas as esferas da vida social.
No caso,assistimos a uma brutal intromissão no mundo da casa dos Paiva por anônimos agentes da ditadura,que chegam da rua e,sem explicações plausíveis,absurdamente promovem insegurança e desarmonia num lar tangido pelo afeto e pela alegria.
O autoritarismo das ditaduras se vale do silêncio — silêncio que é expressão da autoridade absoluta. Foi assim que o pai e marido — o chefe da família — foi raptado numa demonstração de arrogante arbítrio; que,logo em seguida,chega à prisão da dona de casa e da filha. Detenções que reiteram um controle absoluto por precisamente violentador do universo da casa e da família.
No filme,a passagem da invasão da casa pelo arbítrio vai das cenas ensolaradas ao sombrio angustiante da prisão,para terminar numa grata apoteose familiar com Dona Eunice Paiva (Fernanda Torres e Fernanda Montenegro irmanadas no mesmo papel) — num encontro que reafirma o triunfo da casa e da família sobre uma brutal ditadura militar vinda dos espaços sombrios do mundo da rua.
Vale notar um simbolismo final: a presença da heroína desmemoriada. A memória como uma dimensão crítica da condição humana é um tema do livro no qual o filme foi baseado e,naturalmente,da nossa vida pública feita de memórias esquecidas,distorcidas ou anistiadas. Uma delas,talvez a mais cruel e significativa,é a da escravidão negra como um sistema cultural. Vai sem dizer que “Ainda estou aqui” reafirma com força esse viés autoritário,irmão do esquecimento que jaz no nosso sistema de poder.
P.S.: É preciso dizer a Lula III que democracia não tem amante. Ela é difícil até onde foi consolidada — como explicar Trump e puritanismo? Ademais,ela exige uma fidelidade que Lula da Silva mostrou não ter.