A indústria alimentícia cria produtos que provocam prazer intenso,muito maior que alimentos naturais. — Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo
GERADO EM: 20/10/2024 - 04:30
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Nós,humanos,somos muito suscetíveis aos vícios: faz parte da nossa biologia buscar o prazer,e fazer isso repetidamente até evoluir para a dependência,física ou psicológica. Os mecanismos envolvidos nesse ciclo fizeram a fama do neurotransmissor dopamina,que virou uma palavra de uso corrente.
A indústria alimentícia explora muito bem essa nossa característica: cria produtos com uma tal engenharia que provocam prazer intenso,muito maior que alimentos naturais. Pense numa criança diante de um pote de biscoitos recheados e crocantes,cheios de gordura,açúcar e aditivos,e uma cesta de maçãs. Além disso,ultrapassam a sensação de saciedade e são consumidos em grandes quantidades,gerando ganho de peso. E pela sua hiperpalatabilidade,escravizam o paladar da criança,que passa a recusar alimentos naturais,tornando ainda mais difícil a alimentação saudável.
O marketing maciço,em grande parte dirigido aos mais jovens,é muito eficaz. A falta de controle de impulsos os torna também mais suscetíveis à publicidade e à pressão social. Embalagens chamativas,anúncios por toda parte e influenciadores são as estratégias mais usadas. E ainda temos a conveniência,o preço baixo,a disponibilidade universal e o pior,as estratégias dirigidas aos mais pobres.
As vendas só fazem aumentar,prejudicando a saúde de crianças e adultos. 75% das mortes no Brasil são por doenças crônicas como infarto,derrame,câncer e depressão,e elas estão fortemente associadas a ultraprocessados. Uma pesquisa da USP estima que esses produtos matam cerca de 57 mil brasileiros por ano,mais que a violência.
O Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (ENANI) revela que 30% das calorias ingeridas por meninos e meninas,na faixa etária de 2 a 5 anos,vêm de ultraprocessados (bem mais que entre adultos,cerca de 20%). Enquanto 93% das crianças,entre 2 e 5 anos,comem ultraprocessados,três em cada quatro não consomem hortaliças todos os dias. As frutas não fazem parte da dieta de metade dos que estão nessa faixa etária. A questão se agrava entre as crianças negras: são as que menos recebem frutas e hortaliças,e as que mais ingerem ultraprocessados.
Uma ação no presente pode impactar (e muito) o amanhã. A Reforma Tributária tem o potencial de melhorar a saúde das nossas famílias,em especial a das crianças. E esse assunto já foi discutido aqui na coluna; volto a ele porque começa em breve a tramitação no Senado.
A cesta básica do governo colocou todos os alimentos naturais em tarifa zero -infelizmente foram incluídos a margarina e a carne (que gera problemas ambientais enormes).
Na Câmara houve uma vitória e algumas derrotas. A sociedade civil pleiteava o imposto seletivo (também conhecido como “imposto do pecado”) para diversos ultraprocessados,mas só foram incluídos os refrigerantes – o que já é um ganho,pois estão entre os produtos mais tóxicos. Precisamos ampliar essa taxação para todas as bebidas açucaradas (alguns sucos e néctares têm mais açúcar que refrigerantes),além de outros alimentos doces,como balas,chicletes,doces,biscoitos recheados. Dessa forma eles ficam menos acessíveis,e a arrecadação pode ser usada para incentivar o consumo de alimentos naturais e fortalecer a agricultura familiar. E sobretudo,não podemos aceitar nenhum retrocesso numa reforma já tão limitada.
Mais de 80 países já usam com sucesso a tributação seletiva para desincentivar o consumo de produtos nocivos e promover a alimentação saudável. A ampliação do imposto seletivo pelos senadores,seria um passo gigante para promover a saúde de nossas crianças e adolescentes e reduzir os altíssimos gastos do SUS com doenças crônicas. E ainda geraria benefícios ambientais.
A sociedade civil precisa pressionar o senado para caminhar na boa direção. É uma janela de oportunidade única e que pode não voltar a surgir tão cedo.