Passageiros em ônibus lotado no Rio de Janeiro — Foto: Fabiano Rocha
GERADO EM: 26/08/2024 - 04:43
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Em meio ao período mais quente registrado na história da humanidade,o calor ainda é um assunto coadjuvante nas eleições municipais. Enquanto tragédias provocadas pelas chuvas são lembradas,ainda que com propostas pouco detalhadas,o tema calor mal aparece nos programas de candidatos a prefeito. É o que mostra a segunda reportagem da série Cidades Resilientes,sobre como os municípios estão se preparando para os impactos das mudanças climáticas. Se o calor ainda não ganhou protagonismo eleitoral,a pauta vai se impor nos próximos anos,afirmam especialistas,pois impacta a saúde,o bem-estar,a produtividade,a educação e a economia.
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Não apenas a tendência é que a temperatura continue a aumentar — 2023 foi o ano mais quente e 2024 caminha para superá-lo — quanto o risco para a saúde é maior nas cidades,que geram seu próprio calor e podem ser até mais de 10 graus Celsius mais quentes do que as áreas rurais,mostra um estudo na revista Nature. É o chamado efeito de ilha de calor urbana.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) já destacou reiteradas vezes que morre mais gente em decorrência de complicações do calor do que de todos os demais extremos climáticos somados.
Segundo a OMS,entre 2000 e 2019,o calor matou 489 mil pessoas por ano no mundo. Mas esse número é subnotificado. O número real é,no mínimo,30 vezes maior,o que significa pelo menos 14 milhões mortes anuais. Quase sempre as vítimas morrem ou adoecem em decorrências de patologias preexistentes E a conta vai apenas até 2019,período menos quente do que os anos seguintes.
— O calor é um assassino. É um tema que precisa entrar na pauta dos políticos e na cabeça da sociedade. A maior parte das grandes cidades brasileiras não tem adaptação ao calor,e as eleições deveriam ser um nicho de oportunidade para propor medidas inovadoras — ressalta Paulo Saldiva,professor de medicina da USP e pioneiro no estudo do impacto do meio ambiente sobre a saúde no Brasil.
Poucos municípios têm planos de contingência para o calor. São Paulo e Rio de Janeiro criaram planos com protocolo específico para ondas de calor. No Rio,elas passarão a receber nomes,a exemplo do que ocorre com os furacões nos Estados Unidos. Belo Horizonte,Salvador e Fortaleza são outras capitais com planos de contingência para emergências de calor.
Já os planos de adaptação são mais vagos,e a maioria foca em criação de áreas verdes. Medidas mais profundas como mudanças nos planos diretores,no zoneamento urbano e na malha de transportes raramente fazem parte da realidade de propostas de candidatos a prefeito. Quando o enfrentamento ao calor é mencionado,normalmente está acompanhado de programa de arborização urbana.
No Rio,o prefeito Eduardo Paes (PSD) promete o ZN Verde,para arborizar a Zona Norte,a região com menos árvores na cidade. Guilherme Boulos (PSOL),em São Paulo,Bruno Reis (União Brasil),em Salvador,Maria do Rosário (PT),em Porto Alegre,e Fuad Noman (PSD),em Belo Horizonte,também citam a arborização urbana ou os corredores verdes como medidas de mitigação do calor.
O calor aparece ainda nos planos municipais sobre ações climáticas prometidos por candidatos,como Sebastião Melo (MDB),que busca a reeleição em Porto Alegre,Fabio Novo (PT),em Teresina,e Amom Mandel (Cidadania),em Manaus.
Em São Paulo,Ricardo Nunes (MDB),que também tenta a reeleição,afirma que vai mitigar as ondas de calor com a expansão do seu Programa Local de Adaptação e Resiliência Climática (PLARC),que contempla a criação de áreas verdes estratégicas e a descarbonização.
Diretor executivo do Instituto Polis,Henrique Frota explica que,como as ondas de calor não geram eventos únicos tão marcantes quanto tempestades,a comoção é menor,o que reflete em menos promessas eleitorais. Mas ele lembra que o calor já motivou operação recente da prefeitura de São Paulo para atendimento à população em situação de rua.
— Antigamente o normal era ter só operação de frio.
Paulo Saldiva destaca que durante ondas de calor fica em cerca de 100 o número de mortos recebidos por dia pelo Serviço de Verificação de Óbitos de São Paulo,da USP,o maior do gênero no mundo. É o dobro dos demais períodos.
— A maioria é de idosos e pessoas socialmente vulneráveis. O atestado de óbito aponta causas como AVC,infarto. Mas por trás disso está o calor — enfatiza Saldiva,que já demonstrou,em pesquisas,que quando passa de 29°C na cidade de São Paulo,o número de mortes por causas naturais aumenta 50%.
Uma pesquisa recente na revista Journal of Applied Physiology mostrou que quando a temperatura passa de 34°C e a umidade está elevada até mesmo o coração dos mais jovens e saudáveis entra em estresse.
Tudo nas cidades médias e grandes conspira para que esquentem. São feitas de asfalto,concreto,aço,materiais que absorvem e amplificam o calor de dia e o irradiam à noite por horas. Há emissões de veículos e indústrias. E justamente o setor de transporte é onde problema e solução se encontram.
Os transportes são um dos pontos focais na construção da resiliência ao calor,afirma Andrea Santos,diretora para a América Latina da Rede de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Urbanas (UCCRN),professora da Coppe e secretária do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas. Ela frisa que as cidades precisarão não apenas de obras,planos e políticas públicas,mas de novos paradigmas,que coloquem a sustentabilidade e o clima como fatores obrigatórios de projetos.
Santos é uma das autoras do estudo “We need to prepare our transport systems for heatwaves – here’s how” (“Precisamos preparar nossos sistemas de transporte para ondas de calor – veja como”),publicado na Nature este mês. O calor extremo entorta trilhos,derrete fios e superfícies de estradas e estoura pneus.
— Há muitas coisas que se pode fazer. É uma vergonha,por exemplo,que toda a frota de ônibus não esteja refrigerada. Isso é questão de saúde pública. Mas é só o início do que precisa mudar. Adaptação é uma urgência — frisa Santos,que destaca a necessidade de pontos de resfriamento e de hidratação pela cidade. — O calor agora dura o ano inteiro.
A climatização da frota já foi promessa de candidatos em diferentes cidades do Brasil,mas nunca foi cumprida em sua totalidade.
O estudo elenca,entre as medidas necessárias,a instalação de sensores para monitorar as condições de tempo e o desenvolvimento de “ferramentas de resiliência”,para o setor de transporte operar em condições extremas.
O calor também impacta a educação. Pesquisadores da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) constataram que a atenção dos alunos diminui significativamente durante períodos de temperaturas extremas em escolas de Minas Gerais.
O Censo Escolar de 2022 revelou que cerca de 70% das salas de aula em escolas municipais e estaduais no Brasil não têm climatização. Apenas Rio de Janeiro,Recife e Manaus têm mais da metade de suas salas com ar-condicionado.
Um estudo publicado semana passada na Nature Medicine revela que as medidas de adaptação já reduzem as mortes por calor.
A pesquisa,realizada por Elisa Gallo e sua equipe do Instituto de Saúde Global de Barcelona estimaram em 47.690 o número de mortes por calor na Europa em 2023,ano mais quente da História. Mas,sem as adaptações feitas nos últimos anos,o número seria 80% maior. Entre idosos acima de 80 anos o aumento seria de 100,7%.
“Estratégias de adaptação salvam vidas e,à medida que a Terra esquenta,precisamos de ideias ainda melhores”,disse Gallo à Nature.